domingo, 17 de outubro de 2010

"EM BUSCA DO PAI" (Pai Ausente) - REPORTAGEM REVISTA ISTO É DE 1º DE SETEMBRO DE 2010

Um quarto dos brasileiros não tem o nome paterno na certidão de nascimento. Mas uma nova determinação do CNJ pode mudar essa situação e diminuir o sofrimento dos filhos.
 
 
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FAMÍLIA
Lucas é a cara da mãe, Danielle, mas se acha parecido mesmo é com o pai, Carlos
"Com quem você se parece?â€� Sempre que ouve essa pergunta, Lucas enche a boca e responde, todo orgulhoso: “Com o meu pai.â€� Carlos Miguel Jeremias tem pele morena, olhos pequenos e cabelos pretos. Lucas, não. Tem grandes olhos azuis, pele branquinha, bochechas rosadas e cabelos castanhos. É a cara da mãe. Danielle não se importa, acha graça da fantasia do filho. Ela sabe quanto a presença paterna é importante para o menino. Quando Lucas nasceu, em novembro de 2006, Danielle tinha 17 anos. Carlos, 15. O namoro acabara no oitavo mês de gestação. “Eu não podia mais sair, ir à escola. Ficava revoltada porque minha vida tinha desmoronado e a dele continuava normalâ€�, conta Danielle. “Éramos imaturos, brigávamos muito. Então, decidi terminar.â€� Carlos lembra que, com o rompimento, achou que o compromisso com a criança também havia chegado ao fim. “Não queria registrar o Lucas. Pensei que isso estragaria o meu futuro, os meus estudos e que, ser pai, fosse ruim.â€�
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CINEMA
Susanna lançará um filme sobre a ausência paterna e contará a própria história
Carlos acabou se dando conta de que não deveria se esquivar quando foi chamado pelo Instituto Paternidade Responsável – uma organização não governamental que fomenta o comprometimento de pais e mães com o bem-estar dos filhos e o reconhecimento formal na certidão de nascimento. O rapaz revela que a audiência de conciliação foi fundamental para despertar sua consciência. “Me explicaram que eu deveria estar sempre presente na vida do meu filho porque, senão, ele poderia crescer revoltado. E que registrar o Lucas não me afetaria em nadaâ€�, afirma. Carlos, hoje com 19 anos, temia não saber educá-lo nem poder sustentá-lo. “Mesmo vendo a barriga da Danielle crescer, a ficha não tinha caído. Mas, no dia em que peguei o Lucas no colo, senti um frio na barriga e uma moleza nas pernas. Foi uma emoção que umedeceu minhas vistasâ€�, relata. A postura de Carlos mudou tanto que, quando Lucas completou 3 meses, Danielle aceitou reatar o namoro – em junho do ano passado, eles se casaram.
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Sem a intervenção do Instituto, Lucas engrossaria a massa de cidadãos não reconhecidos pelos pais. Estima-se que, pelo menos, sete milhões de crianças e adolescentes estejam nessa situação. Enquanto menos de 2% dos franceses têm apenas o nome da mãe no registro de nascimento, esse índice chega a 25%, em média, entre os brasileiros. Na região de Lages, serra catarinense e berço do Paternidade Responsável, é de 17%. A situação no Brasil é tão grave que, no início de agosto, o corregedor nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, determinou que tribunais de todo o País convoquem as mães de crianças e adolescentes não reconhecidos para que elas apontem (caso desejem) os pais. A ideia é que esses homens sejam intimados e, se necessário, submetidos a testes de DNA. Ao baixar essa medida, o corregedor espera que os tribunais cumpram uma função que lhes é atribuída por lei desde 1992.
Em inspeções feitas pelo País, a Corregedoria constatou que poucos tribunais se dedicam a combater esse problema. De tempos em tempos, alguns juízes se unem em mutirões ou tomam iniciativas pontuais. São Paulo – onde as ações são permanentes – obteve 30,4 mil indicações de supostos pais nos últimos três anos. Segundo Hamid Bdine, juiz auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado, 18,1 mil crianças e adolescentes foram reconhecidos voluntariamente nesse período. Entre 2002 e 2009, o Ministério Público do Distrito Federal chamou 19 mil mães – 23% dos filhos conseguiram o reconhecimento. São iniciativas importantes, mas que, em geral, terminam quando uma nova certidão de nascimento é emitida. “Esse é o diferencial do Institutoâ€�, afirma o juiz Sílvio Orsatto. “A nossa atuação vai além do registro. Focamos na educação, na prevenção e no fortalecimento dos vínculos de afetividade.â€�
O Instituto já atuou em mais de 900 reconhecimentos – 50% sem necessidade de exame de DNA. Esses casos foram resolvidos em audiências de conciliação, não viraram processos judiciais. Se tivessem ido parar na Justiça, Santa Catarina gastaria R$ 9 milhões. “Uma ação de investigação de paternidade custa R$ 10 mil, é demorada e tem um caráter litigioso que faz mal à criança. Para juiz, promotor e advogado, meses ou anos podem não fazer diferença. Mas, para o filho, essa espera é contada em minutosâ€�, garante Orsatto. “O objetivo do Instituto é que o pai tenha uma visão mais clara do seu papel, e não que cumpra apenas a função de provedor.â€�
Para disseminar esse conceito de pai contemporâneo, a equipe do Instituto visita escolas públicas, bairros de Lages e municípios do entorno. Também debate com professores e alunos, orienta agentes comunitários, médicos e enfermeiros a abordar o assunto com gestantes e futuros pais. Faz teatro de fantoches e concursos de desenho e redação. “Já atingimos mais de 32 mil alunos. Um deles desenhou o pai num caixão. Apesar de estar vivo, era aquilo que o pai representava para eleâ€�, afirma a socióloga e advogada Rita Lang, coordenadora do Instituto. “Ser pai não é jogar uma criança no mundo.â€�
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Essa noção mais ampla de reconhecimento a que Orsatto e Rita se referem tem sido analisada por filósofos, cientistas políticos e sociais nos últimos anos. O pensador canadense Charles Taylor acredita que a construção da identidade de uma pessoa passa pelo reconhecimento dos ascendentes e que essa ausência pode ser devastadora. Tanto que sete de cada dez presos em Santa Catarina cresceram sem pai, assegura Orsatto. O filósofo alemão Axel Honneth enfatiza que o reconhecimento engloba três esferas: a do amor, a do direito e a da solidariedade. Sem essa vivência completa, segundo ele, ninguém seria capaz de constituir uma identidade verdadeiramente estável.
“Fica um traumaâ€�, lamenta Joel Albano, 36 anos. Joel foi educado sem pai e, há duas semanas, decidiu reconhecer o filho de 11 anos. O menino ganhou uma nova certidão de nascimento e um nome mais comprido: Ranieri de Jesus Albano. “Eu precisava cortar esse mal que tanto me perseguiaâ€�, afirma Joel. “Parece um mal que passa de pai para filho. Me criei sem pai. Meu filho foi criado sem pai. Daqui a pouco, ele vai ter um filho que vai ser criado sem pai.â€� Joel e Ranieri vivem em Lages, no mesmo bairro, mas não se cumprimentam e desviam o olhar quando se encontram na rua. “Vou tentar me aproximar dele, acompanhar no colégio. Achei que isso ia me estorvar. Mas, na verdade, vai ser um benefício para mim e para eleâ€�, acredita Joel.
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Joel assumiu o filho de 11 anos. No Instituto Paternidade Responsável, assinou
os papéis para que o menino ganhasse uma nova certidão de nascimento
Para a socióloga Ana Liési Thurler, autora do livro “Em Nome da Mãe. O Não Reconhecimento Paterno no Brasilâ€�, trata-se de “uma violência contra filhas e filhos e mulheres-mãesâ€�. O não reconhecimento é herança das relações coloniais e patriarcais e suas raízes históricas estão fincadas no poder da Igreja Católica. “Aqui, vigorou o registro do vigário, com o batismo. A Igreja, secularmente, não permitiu a inclusão do nome do pai no registro da criança nascida fora do casamento. A possibilidade de ter pai, para essas crianças, estava excluídaâ€�, lembra Ana Liési. “Para o Direito Canônico, o casamento era e é um sacramento indissolúvel, instituidor do pai. Concílios afirmaram firme e formalmente serem sementes malditas as crianças nascidas fora do casamento legítimo.â€� Isso vigorou até a criação do Registro Civil de Nascimento, em 1888. A lei brasileira, porém, só admitiu a igualdade entre os filhos – tidos no casamento ou fora – a partir da Constituição de 1988.
De cada três pessoas nascidas no Brasil, uma vem de um casamento, outra de uma relação estável e a terceira de um relacionamento eventual. A carioca Susanna Lira, 38 anos, é fruto de um namoro de dois meses. Durante três décadas, ela achou que convivia bem com a falta paterna. Só quando deparou com um vazio na árvore genealógica que a filha fez na escola percebeu quanto aquilo a incomodava. As únicas informações que ela tem sobre o pai são de que ele é equatoriano e foi militante político nos anos 70 no Rio de Janeiro. “Ele usava nome falso. Não tenho sequer uma foto. A imagem dele é uma vaga lembrança na memória da minha mãeâ€�, afirma Susanna. No fim do ano, ela lançará “Nada Sobre Meu Paiâ€�, um documentário sobre histórias de abandono. “Sou construída pela ausência. Há um buraco que precisa ser preenchidoâ€�, diz. “O meu desafio no filme é mostrar de uma maneira amorosa, não vingativa, que pais não são descartáveis.â€�
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ANGÚSTIA
Roger pensou em contratar um detetive para procurar pelo pai
O pouco que Susanna sabe vem da infância. “Minha mãe nunca me escondeu nada. Se eu tivesse sido enganada, seria bem piorâ€�, avalia. Muitas mães têm a ilusão de que mentir é a melhor forma de lidar com os questionamentos dos filhos. “Descobri que meu pai não tinha morrido quando tinha 21 anosâ€�, relata o microempresário paulista Roger Santos. “Uma tia me viu de cavanhaque e disse que eu estava muito parecido com ele.â€� Daquele momento em diante, Roger afirma não ter deixado de pensar no pai um único dia. Aos 38 anos, órfão de mãe e de padrasto e superpai de três filhos, ele acha que chegou a hora de vasculhar o passado. Sua mãe era comissária da Viação Cometa, numa época em que os ônibus de viagem ofereciam serviço de bordo. Trabalhava principalmente nos trajetos São Paulo-Rio e São Paulo-Campinas. “O nome dela era Graça. Mas muita gente a chamava de Gracinha. O do meu pai é Sérgio. Ele fazia pontas em novelas da Tupi, era conhecido como Gaúcho. Os dois costumavam se encontrar no Largo do Aroucheâ€�, diz Roger. “Cresci num lar feliz, estruturado. Mas isso me perturba muito. Todas as vezes em que encontro um senhor de barba na rua, fico pensando: será que ele é o meu pai?â€�

Por Solange Azevedo, de Lages (SC)

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